A Queda de Braço - por Silva Neto

A Queda de Braço - por Silva Neto

A Queda de Braço – Por Silva Neto

E-mail: João.digicon@gmail.com

 

O Povoado de Jaqueira, distante quatro quilômetros do Engenho Barro Branco, onde se localizava o sítio dos Caboabas, era palco das feiras livres aos domingos. Os matutos da redondeza traziam seus produtos do cultivo da lavoura para serem vendidos naquele povoado de pequena população, mas que, aos domingos, concentrava o dobro de visitantes, transformando aquele lugar em um dos principais centros econômicos da região. A feira livre começava na madrugada do Domingo e se estendia até às três horas da tarde. Lá, podia-se comprar carne fresca de animais abatidos na noite anterior; aves domésticas, ovos, cabritos, carneiros e porcos vivos; farinha, feijão, milho; além de frutas, legumes, e verduras. Produtos como queijo artesanal, manteiga, rapadura, carne seca ou jabá e demais charqueados, produzidos nas fazendas, também eram encontrado nessa feira. Nos empórios, os produtos industrializados e artesanais tais como: café, açúcar, óleo, sal, sabão, querosene, chumbo, pólvora, espoleta, fósforo, vela; candeeiro feito de lata, pavio de algodão, corda, abano, grelha e toda sorte de outros apetrechos indispensáveis na época, também eram vendidos.

A feira funcionava quase como um escambo, (troca) onde os feirantes vendiam seus produtos da terra e compravam os produtos industrializados e artesanais de que necessitavam. A luz elétrica ainda não existia, sendo o povoado iluminado com lampiões a óleo pendurados em postes. As casas, nas propriedades rurais, utilizavam candeeiros a querosene à noite, como fonte de luz. O desenvolvimento urbano era lento, impulsionado mais pelas famílias migrantes ali residentes, do que pelo puder público. Os hábitos predominantemente rurais, não diferençavam o homem da cidade do homem do campo, a não ser pelo sotaque carregado e a aparente ingenuidade do “matuto”, epíteto comum àqueles que moravam nos sítios. É esse o cenário de nossa próxima história “A Intriga”, relatada pelo nosso pai, Amaro, acontecido com nosso avô João Caboaba:

Na casa de farinha do nosso sítio a farinhada foi um sucesso. Desde a última sexta feira, a roda e o forno não haviam parado. As raspadeiras tocavam turnos ininterruptos raspando cargas e cargas de mandiocas.. Homens sem camisas, suados e ofegantes, rodando as manivelas da grande roda, impulsionavam a correia em velocidade contínua. Do outro lado a hábil senhora triturava as mandiocas através do contato direto com os dentes afiados daquela engrenagem em movimento chamada “queitatu”. A prensa, sendo sempre reapertada para retirar o levedo da massa, deixava escorrer o caldo acre misturando-se às cascas de mandiocas no baixio, onde os pássaros em algazarra saltitavam em bandos. Do forno em brasa, aquecido com lenha seca, ouvia-se o raspar do rodo à distância, bem como o cheiro da massa quente engrolada transformando-se em farinha seca.  Assim era aquela casa de farinha aos finais de semana, para que, ao final da tarde do sábado todas as sacas estivessem cheias de farinha.  

Na madrugada do domingo os animais já carregados, transportavam aquelas sacas de farinha para serem vendidas na feira de Jaqueira. Assim era toda semana.

Caboaba, dono de uma das bancadas da feira, em local determinado pelo fiscal tangia aqueles animais carregados, certo de que iria fazer bons negócios naquele dia. Porém, ao chegar ao pátio da feira, dirigindo-se a sua bancada percebeu, à distância, um movimento estranho.  Aproximando-se encontrou um feirante alto, aloirado, forte, de meia idade, tomando sua bancada. Era novato na feira e no lugar. Havia chegado um pouco mais cedo, não se informando a quem poderia pertencer aquela bancada, e logo foi descarregando seus produtos, colocando-os sobre a mesa, sem sequer ouvir o alerta dos vizinhos:

 

 — Cuidado! Esse lugar é de Caboaba!

Ao aproximar-se, Caboaba saúda a todos com um bom dia! Apresenta-se àquele senhor alertando-o, em seguida, que aquele local lhe pertencia. Amâncio, como se chamava, o ignorou, acrescentando:

— O lugar é de quem chegar primeiro!

Caboaba retrucou, demonstrando àquele novato que a regra não era essa, e que ele procurasse o fiscal ou levasse seus produtos para últimas bancadas ao final da feira.  Daí pra frente seguiu-se um bate-boca, com insultos de ambos os lados, descambando para uma iminente briga. Aquieta daqui! Aquieta dali! A contenda ganhou novo rumo, sendo impedidos de atracarem-se em luta sangrenta, graças aos companheiros feirantes, segurando-os para que não acontecesse uma desgraça. Amâncio, mesmo a contra gosto, leva seus produtos para o final da rua, resmungando e vermelho igual à pimenta. A feira prosseguiu.

Mas, Caboaba não era homem de levar desaforo para casa. E mesmo aplacando-se os ânimos a animosidade existente entre eles, a partir daquele episódio, cresceu, a ponto de ficarem intrigados. Os dois eram ranzinzas por natureza; estavam longe de perdoarem as mágoas advindas daqueles insultos dirigidos um ao outro. 

Os dias passaram-se. Nas feiras seguintes Caboaba e Amâncio deram sinais de extrema rixa, não mais se cumprimentaram. Estava decretada entre eles uma ferrenha intriga. Por mais que evitassem o indesejado encontro, o Povoado de Jaqueira era pequeno e os dois tinham atividades comuns, sendo impossível não se encontrarem após a feira, nos armazéns e empórios da localidade. Os colegas de ofício, amigos e demais que haviam sabido da contenda, estavam apreensivos. Mesmo não conhecendo a índole do Amâncio por ser novato no lugar, conheciam a de Caboaba que era homem íntegro e não deixava pendências sem serem resolvidas.

No Povoado de Jaqueira havia a estação do trem, a Igreja, pequena praça à frente; o largo da feira na rua principal e ruas paralelas, tendo como acesso de transeuntes becos estreitos ligando umas às outras para encurtar a distância do acesso principal nas extremidades. Aqueles becos de tão estreitos só passava uma pessoa de cada vez, ou em fila, de um lado para o outro. Não era permitido entrar duas pessoas ao mesmo tempo, nos lados opostos no interior do beco, pois, não cabia. De modo que, aquele que entrasse primeiro tinha a vez, tendo o outro que esperar percorrer os quinze metros até o outro lado para poder entrar em seguida. 

Certo dia havia terminada a feira, e como de costume, Caboaba fazia compras para levar para casa com o dinheiro apurado na venda da farinha. Após comprar o necessário, lembrou-se de comprar uma peça de corda no armazém dos Pellegrinos, localizado na rua paralela. Ao dirigir-se ao beco de acesso, percebeu, do outro lado, a aproximação do Amâncio. Ambos necessitavam passar por aquele beco estreito, sem que nenhum desse a vez. Mesmo sendo homens bastante fortes, impossíveis de se cruzarem no interior daquele cubículo, os dois colocam os pés ao mesmo tempo, e seguem em frente sem que dessem trégua às suas intransigências. Entraram naquele percurso de uns quinze metros, um ao encontro do outro. Era impossível ultrapassar naquele funil, mesmo que um deles abrisse as pernas para o outro passar por baixo. Naquele momento, outros transeuntes aproximavam-se para atravessar o beco, dando por conta de dois indivíduos no interior do cubículo de uma só vez. Ao perceberem que se tratava de Caboaba e Amâncio, o desespero tomou conta. Gritos e mais gritos de ambos os lados: — Não façam isso!... ——Voltem! —Voltem! — Pelo amor de Deus! —Seu Caboaba, volte! Por favor! Os dois aproximavam-se daquela roleta russa, cara amarrada, bufando, ignorando os apelos de toda aquela gente curiosa que se aglomerava de um lado e do outro do beco. Uma verdadeira tira teima; duelo nunca antes acontecido por aquelas bandas. Torcida não havia nem para um lado, nem para o outro. Todos desejosos de que um deles desistisse, porém, nenhum deles tomava a iniciativa, ainda mais intrigados que eram. Os dois dentro do beco, sem darem uma palavra, apenas impando e resmungando como dois touros bravos, peitavam-se, amassavam-se, ignorando um ao outro. Nem palavras, nem armas, mesmo estando armados, só queriam passar um pelo outro sarcasticamente, desafiando a lei da física. Suor e sangue rolavam daqueles corpos nus, pois, àquela altura suas camisas já estavam em farrapos. Não se tocavam nem se empurravam com as mãos, a fim de um ou o outro recuar e sair pela tangente. Queriam mesmo ultrapassar um ao outro como obstáculo à sua frente, pois, afinal, estavam intrigados.

Caro leitor: aqui faço uma pausa! Você poderia imaginar o que se passava na cabeça daqueles dois trogloditas?! A situação era por demais, inusitada. Um não queria machucar o outro. Só queria passar um pelo outro, como que seu adversário fosse um objeto, um obstáculo qualquer. Imaginem! Era o mesmo que dizer: Você não está aqui! Você não existe!... Não lhe enxergo!

O delegado da cidade foi chamado para apaziguar a contenda, Porém, até que o Delegado chegasse já estariam mortos. Assim pensavam todos.

Em meio aquele furdunço os dois homens estavam molhados de suor da cabeça aos pés. Seus corpos lisos derretiam ao contato um ao outro, sem perspectivas de alcançarem seus intentos. Até que, sem se saber o porquê, os dois “espirraram” um para um lado, o outro para o outro. Sem que ninguém pudesse explicar, conseguiram cruzar dentro daquele beco estreito. — Impossível! — Impossível! A multidão perplexa Gritava: — Viva Caboaba! —Viva! Amâncio. Enquanto os dois apareciam um de um lado e o outro do outro lado do cubículo, ensanguentados, cabeças erguidas, caras amarradas, como duas mulas, seguiam em frente para seus afazeres.

Nessa hora, o Delegado chega. Após inteirar-se do ocorrido manda recado para que os dois compareçam à Delegacia para prestarem depoimento.

Na Delegacia, os dois homens, intransigentes, recusavam-se a falar sobre o início da desavença; enquanto o Delegado toma a iniciativa, aplicando-lhes tamanha advertência:

— Pois bem! Já que os senhores não querem falar, quero adverti-los de que o que fizeram é muito feio. — É um mau exemplo para a população deste povoado, onde todos se conhecem e vivem em paz.. Dirigindo-se a Amâncio disse: — Você, que é novato no lugar, senhor Amâncio, fique sabendo que nosso povoado é de povo simples e pacífico. Aqui, não é lugar de briga. — E você, senhor Caboaba, é bom domar seus instintos. — Apesar de sua boa conduta entre a vizinhança e nunca ter tido queixa do senhor, sabemos que não é homem de ceder por nada. — Então, vamos fazer um pacto. — Pensei em realizar uma queda de braços onde vocês disputariam até que o perdedor se dê por vencido. — Concordam! — Quem perder sela a paz com o seu adversário através de um aperto de mãos. — Essa disputa será em praça pública diante daqueles que queiram assistir. (Na certa, toda a população curiosa do Povoado). Tomando a palavra, Caboaba pergunta: — Quando será essa disputa? O delegado responde: — Será após sararem dos arranhões profundos de que foram acometidos nessa peleja idiota. (Referia-se à passagem pelo beco estreito).

Trinta dias passaram-se. Os contendistas já estavam sarados quando receberam o recado do Delegado sobre o grande dia da disputa da “queda de braço”.

Data e local determinados, a expectativa era geral. Toda população de Jaqueira estava ansiosa pela chegada da grande disputa entre os dois mais famosos contendores da região. Violeiros faziam rimas sobre o tema envolvendo a incrível passagem do beco estreito, e, agora, a queda de braço entre Caboaba e Amâncio. As apostas começavam a subir na Bolsa Popular:

— Caboaba ou Amâncio?! — Quem vai ganhar?! — Quanto aposta, amigo?!

O clima estava esquentando. Tanto um como o outro se preparava para a grande disputa, tendo como árbitro o Delegado Silveira que, inteligentemente, sugeriu aquela disputa para aplacar de vez o ódio entre Caboaba e Amâncio. Sem dúvida, eles iriam comportar-se esportivamente diante do Delegado e de toda aquela multidão curiosa desfazendo aquela intriga com um cordial aperto de mão, como haviam concordado ao aceitarem a disputa.

Assim, o dia tão esperado chegou. O domingo amanheceu ensolarado. Caboaba chegou cedinho à feira livre, antes de Amâncio. Arrumou sua bancada como normalmente o fazia, mesmo porque a disputa seria à tarde, após a feira.

Uma bancada foi escolhida pelo Delegado para a disputa, notadamente, aquela mais forte, para não haver problema de quebra na hora em que os dois homens imprimissem força muscular.

A hora chegou! Os dois homens postaram-se sendo averiguada pelo árbitro a posição das mãos para não haver suborno. Ouvi-se, o estrondo do tiro de pistola para cima, e, ao barulho infernal dos assistentes a disputa finalmente começou.

Nessa tira teima havia torcida. Afinal, era uma disputa esportiva apesar das circunstâncias, pois, Queda de Braço, Luta de Braço ou Braço de Ferro, como queiram, é uma das disputas mais antigas do planeta, que mais tarde virou esporte. Longe daquele amassa corpos entre beco estreito, sei lá que nome se pode dar àquela disputa única acontecida entre Caboaba e Amâncio!

Os dois ofegavam, bíceps expostos, veias dos braços e dos pescoços infladas, bufando e fazendo caretas, como se cara feia amedrontasse um ao outro, mantinham-se em equilíbrio, longe de um deles ceder.  As torcidas, por sua vez, eufóricas e esperançosas de ganharem suas apostas, gritavam por mais da conta pelo nome do seu contendor preferido: — Vamos Caboaba! — Mostra tua força! — Vamos Amâncio! — Derruba ele! — Força! — Força!  Naquele momento a bancada dava sinais de não suportar a pressão. Toda a bancada tremia, e suas pernas de apoio já estavam bambas. O árbitro, Delegado Silveira, interrompeu a disputa. Todos, ao mesmo tempo, suspiraram, — Ah! Mas, a peleja estava igual. Nenhum dava sinal de que iria perder. Não havia razão para lamentações.

O árbitro levou os dois para uma mesa de bilhar, que sendo aparentemente forte, era desgastada pelo tempo. A multidão o acompanhou.

Mãos postas, tudo ajustado, a disputa foi decretada. A mesma algazarra dos assistentes, uns subindo aos ombros dos outros para melhor ver no interior daquele salão os dois homens fazendo caretas, imprimindo força descomunal numa disputa sem tréguas. Lado de fora os animadores de apostas, espécimes de leiloeiros, incitavam a multidão: — Quem dá mais!  — Quem dá mais! —Caboaba ou Amâncio? — Quem vai levar essa disputa?

Um levava o braço do outro ao extremo, enquanto o outro se recuperava invertendo a posição, enquanto o Delegado olhava atentamente se a mão do adversário havia tocado à mesa.

Mais uma vez a banca de bilhar cedeu, não suportando os solavancos de dois homens fortes, imprimindo e comprimindo forças sobre ela. O Delegado pensou! Só há uma forma de terminar com essa disputa, é levar os dois para a plataforma da Estação do Trem. Assim foi feito. Os dois colocaram os cotovelos sobre rodilhas de pano, para não se ferirem e a peleja continuou. Puxa pra lá, puxa pra cá, impando e soltando suspiros semelhantes a uma locomotiva Maria Fumaça, até que, finalmente, se conheceu o vencedor. Amâncio impõe tremenda força sobre Caboaba, levando seu braço a centímetros da plataforma. Em seguida, Caboaba infla suas veias do pescoço e com uma careta infernal, leva o braço de Amâncio até tocar na plataforma, não só tocar, mas a esfregá-la no cimento bruto. Estava assim decretado o final da disputa. Caboaba ganhou a peleja. O delírio do povo foi geral!— Viva Caboaba! — Viva Caboaba!

Amâncio, indignado, mas dado por vencido, não tinha nada a fazer que cumprir o determinado por eles diante do Delegado Silveira e do povo. Estendeu-lhe a mão e disse-lhe: — Caboaba, você é um homem! A intriga finalmente acabou.

Vejam como o homem evoluiu de lá para cá! Evoluiu? Será?

 

 

 

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